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1984: O GOZO INTELECTUAL DO SENSO COMUM

1984, de George Orwell, é um livro horrível... Sim, leitor, apenas digo isso a título de sensacionalismo. Em verdade, talvez esse tenha sido um dos livros mais importantes da minha vida. Li-o no auge da imbecilidade dos meus 14 anos, após ter me encantado com Revolução dos Bichos, que era leitura escolar obrigatória. 1984 me marcou por ter sido o primeiro livro que eu li por livre e espontânea vontade, algo que foi essencial para não me tornar um ressentido com a literatura pelo resto da vida. A desvantagem disso foi ter me tornado um péssimo aluno de direito, ambiente extremamente fértil para ressentidos literários e pessoas sem sensibilidade artística.

Porém, existe um fundo de verdade na frase sensacionalista: 1984, como um fenômeno de massas, é um livro horrível. Sei disso por experiência própria. Tendo lido o livro munido daquela ignorância enciclopédica da adolescência, a obra de Orwell me trouxe todas as respostas de todos os problemas jurídicos e políticos de toda a face da terra. A vida se tornava muito simples: se há um político ou juiz (há diferença?) autoritário, dissimulador, controlador da mídia, censor, manipulador das palavras, que tenta apagar o passado a todo custo, que inventa inimigos imaginários para inflar o ódio de seus partidários e que concede migalhas a uma população passiva e alienada (da qual eu não fazia parte, evidentemente), o diagnóstico era mais do que certo: EIS AÍ O GRANDE-IRMÃO!!!... Passada uma década desde essa primeira leitura, o diagnóstico que faço é de que o senso comum que quer pagar de intelectual tem uma idade mental estimada de 14 anos.

Essa conclusão é justificada quando se observa o referido livro como fenômeno editorial nessas últimas duas décadas. Reitero: o livro em si é uma obra-prima, o livro como peça da cultura pop é uma aberração. O ano era 2015. No Brasil, Dilma bambeava na Presidência. Os veículos de oposição, que alegavam a censura de jornalistas que denunciavam os escândalos de corrupção da época, eram categóricos ao afirmar que a Presidente era a reencarnação não-fictícia do próprio Big Brother e o livro circulava massivamente na roda dos defensores públicos do impeachment. Um ano depois, fez-se a revolução! A Grande-Irmã foi derrubada! Nunca mais o mundo sucumbiria a uma realidade distópica como essa em que vivemos durante os árduos anos de governos vermelhos!!!... E eis que surge, no ano seguinte, outro ator para vaga do nosso amado personagem.

Se a democracia brasileira é comparável a um cirquinho de interior, a democracia estadunidense é um Cirque de Soleil, um espetáculo de proporções globais. A primeira posse de Donald Trump, em 2017, marcada por denúncias duvidosas a respeito da credibilidade das contagens de votos, fez com que as vendas da obra do escritor britânico disparassem em todo o mundo, como o G1 noticiou à época:


O romance de George Orwell "1984" voltou às listas de livros mais vendidos nos Estados Unidos nesta terça-feira (24), após uma série de declarações incorretas ou imprecisas terem sido feitas pelo presidente Donald Trump e membros de sua administração.

Publicado pela primeira vez em 1949, o clássico de Orwell é um conto distópico que tem lugar numa sociedade onde os fatos são distorcidos e suprimidos numa nuvem de "novilíngua". O livro chegou ao topo da lista de mais vendidos da Amazon nesta terça-feira.


Porém, nossos vira-latas de plantão não ficaram para trás, e os antigos apoiadores do impeachment produziram mais um concorrente à vaga de Grande-Irmão. As alegações de supostas fraudes eleitorais, a desinformação difundida durante a pandemia e a exaltação da personalidade de filósofos de boteco tornaram Bolsonaro o ator tupiniquim perfeito para encarnar o personagem, e o romance voltava a cair nas graças da esquerda. Até então, 1984 era um livro que passava de mão em mão conforme os ares da oposição mudavam.

Em 2021, uma feliz notícia: as obras de Orwell entravam em domínio público. O resultado foi estarrecedor. A Companhia das Letras não possuía mais o domínio intelectual da obra e rapidamente quase todas as editoras do país se aproveitaram da situação. Dezenas de edições diferentes de 1984 eram expostas nas livrarias brasileiras. O sucesso mercadológico foi notável, conforme demonstra uma reportagem da Veja:


As vendas já pomposas do livro no Brasil foram catapultadas para outro patamar esse mês. Em domínio público, 1984 ganhou diversas novas edições de catorze editoras, aumentando a oferta de capas, tamanhos, valores e até brindes oferecidos junto à obra. O resultado: nesta semana, 1984 vendeu quase 40.000 cópias. O salto em relação à semana anterior foi de notáveis 663%, segundo a consultoria especializada Yandeh.


O desastre está consumado, agora todos têm um Grande-Irmão para chamar de seu! As livrarias anunciam: O seu candidato perdeu a eleição? Certamente o vencedor é o Grande-Irmão e merece sofrer um impeachment! Ele ganhou? Então certamente o perdedor é o Grande-Irmão e merece ser preso! O STF proferiu uma decisão que te desagradou? 11 Grandes-Irmãos! A decisão foi contra o seu adversário político? 11 caçadores de Grandes-Irmãos! Compre agora a edição que mais lhe agrada e tenha sua satisfação garantida!

Em suma, o mesmo entusiasmo juvenil que eu tive ao ler o livro aos 14 anos, hoje domina todo o debate público entorno da obra. Sempre há um Winston para dizer: “Os Grandes-Irmãos são os outros”.

Diante disso, minha contribuição para esse debate morto é uma breve interpretação despudorada sobre a obra. Façamos um raciocínio originalista e nos perguntemos qual era a intenção de Orwell. Partidário do socialismo, a crítica de Orwell sempre foi voltada ao totalitarismo, mais especificamente ao terror do Estado Soviético. A descrição física do Grande-Irmão é uma sátira de Stalin, mas seus métodos são, também, nazi-fascistas. 

Observar que o senso comum, a todo o momento, encontra alguma sombra do totalitarismo em cada esquina de um Estado Democrático de Direito, faz questionar se a própria democracia não é uma produtora em massa dessas caricaturas totalitárias. Seria a democracia liberal uma fábrica de Pequenos-Irmãos? Provavelmente ninguém admitiria que sim, mas é notável a satisfação orgástica que se observa em todos que lêem a obra e se regozijam em atribuir a pecha de Grande-Irmão aos outros. No romance com pano de fundo totalitário, Winston aprende a odiar Goldstein (um opositor do regime) e, no final, se vê amando o Grande-Irmão. Nossas democracias contemporâneas uniram o útil ao agradável: odeia-se o Grande-Irmão e, ao mesmo tempo, goza-se com a projeção dele no outro.

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