A aprovação do PLC n. 68/2024: A isenção das carnes e o populismo tributário
- Filipe Gouveia
- 27 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de nov. de 2024
Em dezembro de 2023, depois de mais de 40 anos de debates, o Congresso Nacional brasileiro aprovou a tão discutida e necessária Reforma Tributária. O Brasil, pela primeira vez em um regime democrático, enfim chegou aos consensos necessários para aprovar, em dois turnos, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, a Emenda Constitucional n. 132, que, com a adoção do IVA dual, simplificará o caótico sistema tributário e proporcionará, na medida do possível, uma maior justiça tributária no consumo, com a atenuação dos efeitos regressivos.
Em síntese, os principais pontos da reforma são: a unificação do ISS (imposto municipal) e do ICMS (imposto estadual), que se tornarão o IBS (Imposto sobre bens e serviços); a unificação do PIS e da COFINS (tributos federais) que se tornarão a CBS (Contribuição sobre bens e serviços); a diminuição para zero da alíquota do IPI (imposto federal), com exceção aos produtos da Zona Franca de Manaus; a instituição do Imposto seletivo, conhecido como imposto do “pecado”; a isenção da cesta básica e demais produtos; e a instituição do cashback, o retorno de um percentual dos tributos pagos para famílias de baixa renda.
É consenso que o texto aprovado não é perfeito, mas é digno de palmas quando comparado com a loucura tributária atual. A Reforma Tributária era tão necessária e vai desburocratizar tanto a economia que o Fundo Monetário Internacional (FMI) estimou que o Brasil, ao longo da transição entre o sistema atual e o novo (2026-2033), terá um aumento de 6% a 11% no PIB decorrente da simplificação do sistema tributário. Em outras palavras, estima-se que a mera simplificação dos impostos pode fazer o PIB brasileiro crescer mais de 10% em menos de uma década.
Entretanto, quando se trata de Brasil, nem tudo são flores. Infelizmente, entre os trópicos, as flores dão lugar ao populismo.
Contudo, antes de explicar a polêmica, é necessário ressaltar duas premissas fundamentais para explicar a Reforma Tributária. A primeira premissa é que a alíquota dos tributos será única para os bens e serviços, salvo para aqueles que tiverem um tratamento diferenciado conferido pelo Legislador. A segunda premissa (e talvez mais importante) é que a Reforma não busca diminuir a carga tributária, mas tão somente simplificá-la.
Assim, ao interpretar as duas premissas da Reforma Tributária aprovada, tem-se que cada isenção conferida a um bem ou serviço, nomeadas de exceções, resulta no aumento da alíquota geral, que incidirá sobre todos os demais bens e serviços. Nesse sentido, pela lógica da alteração aprovada, quanto mais exceções forem estabelecidas, maior será a alíquota geral, que, novamente, incidirá sobre todos os bens e serviços que não tiverem tratamento especial.
É sob esta lógica que se deve analisar a aprovação do PLC n. 68 de 2024, o Projeto de Lei Complementar que regulamenta a Reforma Tributária. O texto aprovado na Câmara dos Deputados definiu, entre diversas coisas, os itens que irão compor a cesta básica, que será constitucionalmente isenta.
É aqui, na discussão de quais itens serão isentos, que se encontra a grande distorção: A oposição, com o apoio do governo, na contramão das recomendações técnicas, aprovou a inclusão da carne vermelha na cesta básica.
Sob uma perspectiva inicial, a isenção das carnes é ótima, é a oportunidade de possibilitar que as pessoas de baixa renda tenham condições de comprar carne vermelha. Entretanto, o debate é mais profundo. Há que se questionar, por exemplo, se essa isenção não é regressiva, qual será o impacto na alíquota geral, se não fere o cashback instituído, entre outras questões.
Logo de cara, ao analisar o texto, fica claro o caráter regressivo da matéria aprovada. Percebe-se de imediato que não há diferenciação entre as carnes que comporão a cesta básica. Pelo texto aprovado, o filé mignon será isento da mesma forma que o coxão duro. A picanha será isenta da mesma forma que o acém. Entretanto, o filé mignon e a picanha não são carnes frequentemente consumidas por famílias de baixa renda, mas, sim, por famílias com renda maior. Portanto, esta isenção é mais benéfica para as famílias de renda mais alta (que tem uma capacidade contributiva maior) do que para as famílias de renda mais baixa, o que vai de encontro com a progressividade tributária, regra de ouro em todos os regimes tributários do mundo.
Além da regressividade, outro ponto negativo que a isenção das carnes proporciona é o aumento que terá que ser adotado na alíquota geral. Por ser um produto extremamente consumido nos lares brasileiros, a exceção conferida às carnes impacta fortemente a arrecadação. Nesse sentido, para compensar a perda de arrecadação, é necessário aumentar a alíquota geral. No caso das carnes, técnicos da Fazenda estimam que será necessário aumentar a alíquota geral em 0,53%, percentual que aparentemente é irrisório, mas, na realidade, é a diferença entre o Brasil se tornar o país com a maior alíquota do IVA no mundo ou não.
Por fim, essa isenção desfigura o cashback. A ideia inicial aprovada era que as famílias de baixa renda recebessem de volta um percentual dos tributos pagos, percentual que foi definido em 20%. Entretanto, ao se isentar um bem tão consumido (inclusive por famílias com renda elevada), será necessário aumentar a alíquota em todos os outros bens, o que acaba por onerar as famílias com renda menor. Portanto, a isenção das carnes não acaba com o cashback, mas o distorce.
Para materializar a lógica apresentada, cita-se como exemplo o serviço de fornecimento de água. O tratamento e distribuição de água não foi isento e nem recebeu qualquer tratamento tributário diferenciado, dessa forma, será aplicada a alíquota geral à conta de água. Ocorre que, para compensar a isenção da carne para todos (inclusive o filé mignon e a picanha, que, em regra, famílias de baixa renda não comem), será necessário adicionar 0,53% à alíquota geral, que incidirá sobre a conta de água (mas, adivinha quem também paga conta de água).
Em outros termos, o que foi aprovado pela Câmara dos Deputados foi, na prática, a oneração dos mais pobres para desonerar produtos consumidos por pessoas mais ricas, o que distorce completamente a lógica da justiça tributária.
Nesse sentido, se o que se busca é desonerar as pessoas mais pobres, é mais interessante devolver uma parte dos tributos para essas pessoas do que isentar a todos e ser obrigado a aumentar a alíquota em outros produtos e serviços, que serão consumidos pelas pessoas mais pobres, o que, em última análise, cria uma distorção regressiva em que os mais pobres bancarão a isenção de itens que serão consumidos pelos mais ricos, como o filé mignon e a picanha.
Entretanto, como é muito mais fácil capitalizar politicamente com um populismo tributário, vale mais a pena ser o pai da isenção das carnes, não é à toa que a oposição e o governo reivindicam a paternidade do projeto.
Dito tudo isso, apesar dos pesares, eu, como um bom otimista, gosto sempre de ressaltar que há uma luz no fim desse túnel. No caso, a luz no fim do túnel - que pode se mostrar um trem - é que a PLC n. 68 de 2024 ainda será apreciada pelo Senado Federal, que tem a oportunidade de consertar o equívoco da Câmara dos Deputados ou acrescentar ainda mais distorções à Reforma Tributária.
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