A Necessidade de Certeza da Materialidade do Delito para o Recebimento da Denúncia
- Samuel Scaramello Riera
- 12 de fev.
- 4 min de leitura
Atualizado: 13 de fev.
Tem-se notado, ultimamente, que decisões do Superior Tribunal de Justiça vem reforçando a desnecessidade de certeza da materialidade e da autoria para o recebimento da peça acusatória, é o que podemos ver do enunciado da jurisprudência em tese do STJ que dispõe: “A propositura da ação penal exige tão somente a presença de indícios mínimos de materialidade e de autoria, de modo que a certeza deverá ser comprovada durante a instrução probatória, prevalecendo o princípio do in dubio pro societate na fase de oferecimento da denúncia”.
Esse precedente foi formado pelos julgados dos HC 433299/TO, HC 426706/MG, AgRg no AREsp 532230/SP, RHC 081735/PA e no RHC 054186/SP, cristalizando, dessa maneira, o entendimento da Corte.
A ideia de que não há necessidade de certeza no que tange a materialidade na fase pré-processual se mostra um equívoco, pois não podemos submeter cidadão algum ao constrangimento de um processo penal havendo dúvida quanto à existência de um delito.
Se na fase do inquérito, que é por natureza sigiloso, se afigura constrangimento ilegal excesso de tempo para determinar o fumus comissi delicti, sendo assim passível de trancamento via HC, muitos mais o é na ação penal que é por natureza pública, e há nos processos de maior repercussão amplo televisionamento e ampla divulgação midiática.
No Brasil, a espetacularização do processo tem levado a consequências por demasiado violadoras dos direitos e garantias fundamentais, o princípio da presunção de inocência possui uma dimensão externa que assegura aos cidadãos cautela na divulgação de questões atinentes ao processo em andamento, pois pode gerar pré-compreensões e juízos de pré-condenação pela sociedade, em que nada adianta a posterior absolvição, o Peru chegou a ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por divulgações descuidadas atinentes a um processo criminal, Caso J. vs Peru.
A problemática de aceitarmos a possibilidade de materialidade na fase de recebimento da denúncia, somente concretizando a certeza na fase de instrução probatória, é que torna por demais perigoso a possibilidade de erro judiciário, não é à toa que o CPP exigiu para a comprovação da materialidade do delito o meio mais seguro de prova, a perícia, feita no exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, tornando assim uma prova tarifada, exceção ao princípio da persuasão racional, pois figura-se como exigência para comprovar a materialidade, salvo impossibilidade de fazê-lo, podendo supri-lo a prova testemunhal.
Existem crimes, no entanto, que não podem ser supridos por outro meio senão pela perícia, no crime, por exemplo, de falsificação de medicamento a testemunha não conseguiria suprir a necessidade da perícia, pois ela não consegue atestar algo que depende de conhecimento técnico, também nos crimes previstos no Estatuto do Desarmamento, a testemunha não consegue dizer se a arma que a pessoa portava era de uso proibido ou restrito, dessa maneira deve o acusado ser absolvido, porém se não houve apreensão sequer do objeto necessário a perícia, por qual motivo então submeter o cidadão ao processo, sabendo que não há elemento essencial para haver a certeza do delito ou da tipificação.
A prova indiciária levaria ao processo para o acusado sofrer todas as agruras do processo para no final ser absolvido, mesmo sabendo que falta elemento essencial para constatar a existência do delito?
A existência do delito exige prova, quando não for possível exame de corpo de delito direto, será feito o indireto, que não deixa de ser prova indiciária, porém esta depende de outros elementos que corroborem para a certeza do juiz, se esta não for possível também, a testemunha poderá formar a convicção do juiz, salvo nos casos em que não for possível, como nos exemplos anteriores, devendo neste caso ser solicitado o arquivamento do inquérito.
É admissível para o oferecimento da denúncia, no que tange a autoria, meros indícios, mas no que tange a existência do crime não.
A materialidade do crime é a tipicidade processual do delito, se fosse possível a mera prova indiciária da materialidade do delito poderia um processo ser instaurado apenas com o relatório do COAF de movimentação suspeita em relação a lavagem de capitais, porquanto nesse caso haveria indícios mínimos de materialidade e autoria, dessa maneira se um servidor público que recebe cinco mil reais por mês recebesse uma herança de Dois milhões poderia ser alvo de um processo criminal sem a menor certeza acerca da existência do delito e sem procedimento investigativo anterior.
Contra o cidadão se tem toda a estrutura da polícia, que necessita encontrar culpados, se tem toda a estrutura do Ministério Público, que necessita condenar culpados, se não tivermos garantias mínimas para evitar o constrangimento de sofrer uma ação penal contra todo o aparato estatal repressivo, dificilmente teríamos um Estado democrático e de direito.
A ideia do in dubio pro societate presente na decisão não tem base constitucional nenhuma, sequer existe no nosso ordenamento jurídico, ao contrário do in dubio pro reo que funciona como regra probatória em razão do princípio da não culpabilidade, e demonstra a regra de tratamento do ônus da prova ser do órgão acusador.
Um caso bastante conhecido foi dos irmãos Naves, em que as autoridades deduziram que a vítima estava morta, pois estava desaparecida, houve processo, houve condenação e posteriormente apareceu a vítima viva. Flagrante erro judiciário.
No processo cabe a discussão de autoria, de excludentes de ilicitude, culpabilidade, e até mesmo prova em contrário da materialidade do crime, mas em tese a mera dúvida não pode pautar uma acusação no que tange a existência de crime, o juiz deve estar convicto, podendo alterar sua convicção em juízo, mas não pode ter dúvida razoável no momento de receber a peça acusatória, ainda figura in dubio pro reo.
Pessoas acusadas em processo criminal, muitas vezes, apesar de absolvidas, são taxadas de criminosas dada a ampla divulgação dos meios de comunicação, assim, submeter uma pessoa a um processo que pode afetar sua imagem para sempre, sem haver a certeza sequer da existência de um delito é violar o direito fundamental a presunção de inocência, plasmado na nossa constituição e nas declarações internacionais de direitos humanos.
Kommentare