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A Vida Não é Como Ela Deve-Ser: Reflexões Sobre o Papel do Direito Penal Diante do Desejo a Partir de um Conto de Nelson Rodrigues

A seguinte cena é comum à praticamente todo estudante de direito. Aula de direito penal, assunto: violência doméstica. Situação cliché: a mulher, vulnerável socioeconomicamente, sente medo de denunciar o marido agressor pois não tem condições de se sustentar sozinha. A provocação óbvia do professor: qual é o papel do direito nessa situação? Como agir para que a vítima, vulnerável, não fique em uma situação pior do que a que ela já se encontra? Tão óbvia quanto a pergunta é a resposta: o direito deve se desdobrar para, de algum modo, proteger a vítima em situação de vulnerabilidade e não a deixar ainda mais desamparada caso o agressor venha a ser preso. A aula segue normalmente e todos tem a sensação compartilhada de estarem criando um mundo melhor dentro das quatro paredes da faculdade.

Longe de querer menosprezar a importância desse debate, apenas deixarei ele de lado, pois não é com as obviedades que eu me preocupo. Ao invés disso, trarei ao debate uma situação inusitada, que apenas poderia ser concebida por uma das maiores mentes do teatro e da literatura nacional. Trata-se de conto Caça dotes, presente na coletânea A vida como ela é..., de Nelson Rodrigues.

A história começa com um diálogo entre dois amigos, Norival e Aarão, que discorrem sobre o falecimento de um conhecido. Norival, considerado por Aarão como “o sujeito mais cínico do Rio de Janeiro”, é descrito como uma pessoa que nunca havia ocupado um cargo ou emprego, e sua única fonte de renda era envolver-se com mulheres da alta classe carioca e usá-las como patrocinadoras de suas empreitadas. Diante da morte do conhecido, não é de se surpreender que a única preocupação de Norival era com a viúva do falecido, Suzana, uma mulher sabidamente rica do Rio de Janeiro.

Aqui Nelson já nos coloca diante de dois retratos bastante inusitados para o aluno de direito acostumado aos clichés do atual contexto histórico: um homem comum, desempregado (pode-se dizer “vulnerável socioeconomicamente”), extremamente manipulador, em oposição a uma mulher da elite carioca (“grã-fina”, no vocabulário rodrigueano), instruída e de família poderosa. Essa inversão hierárquica dos dois signos de gênero (feminino e masculino), fruto de uma mente jornalística e dramatúrgica que se encontrava em constante contato com a realidade cotidiana do Rio de Janeiro da metade do século XX, é o ponto de partida para a reflexão que se busca trazer mais para frente.

De volta a narrativa, na mesma noite, Norival comparece ao velório com a intenção de, para o pasmo de Aarão, “dar em cima da viúva na cara do defunto!”. Suas investidas foram bem-sucedidas, na medida em que todos os presentes perceberam ali o nascimento de um romance. A aventura entre os dois tem seu ápice com a cena do primeiro beijo, descrita com melhor do tom cômico e dramático de Nelson:

Quando achou que era chegado o momento, pronto, agarrou a menina, num desses beijos definitivos. Só a largou no limite extremo da própria capacidade respiratória. Por sua vez, Suzana, com falta de ar, já esperneava. Diante dele, no assombro do beijo inesperado e feroz, ela pôs-se a chorar. Norival arquejava: “Mas que foi? Tão natural um beijo!” Assoando-se no lencinho, ela, ainda de luto fechado, soluçou a confidência:

– Meu marido não me beijava assim!

Nelson, apesar de ser um confesso inimigo dos psicanalistas, principalmente Freud, faz, com essa simples cena, uma das melhores ilustrações literárias do conceito freudiano de desejo. De acordo com Marilsa Tafarel, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP:

Para Freud, o desejo é um movimento em direção à marca psíquica deixada pela vivência de satisfação primeira que acalmou uma necessidade, como a fome, no bebê. Através dessa inscrição mnêmica poderá então a criança reeditar a satisfação de forma alucinatória, nessa pouco duradoura autonomia que a alucinação fornece. Seria essa a realização do desejo. Contudo, a tensão da necessidade que persiste conduz à ação de esperneio ou choro. A necessidade se impõe e a criança precisa de um adulto capaz da ação específica de dar leite, de cuidar (TAFAREL, 2019).

Porém, como para todo autor trágico, desejo e tragédia andam de mãos dadas (e é aqui que o direito esperneia). Dando prosseguimento à história, Norival casa-se com Suzana, que recorrentemente menciona o quão prazerosa é a nova vida conjugal em comparação com a antiga. “Eu não sabia que o amor era assim”, dizia para uma amiga. Entretanto, como era de se esperar, Norival não suporta mais a vida de casado, e admite que está com Suzana apenas pelo dinheiro que esta lhe dava sem limites. É nesse ínterim que ocorre o clímax do conto:

De três em três dias, apanhava um cheque com a esposa e ia gastar com as piores mulheres da cidade. Chegava em casa bêbado de cair. Não havia esposa mais humilhada, mais ofendida. E corria, até, que ele, nas suas bebedeiras monumentais, a castigava fisicamente.

O pai de Suzana, ao saber disso, promete “quebrar a cara” do genro. Diante disso, aos prantos, Suzana se opõe, e o conto se encerra com um diálogo ao mesmo tempo dramático, trágico e patético, tal como a face do desejo que Nelson procura expor:

– Olha aqui, papai: não se meta! Não dá palpites!

– Mas é um miserável! Quer o teu dinheiro!

Ergueu o rosto: “Seja um miserável! Seja o que for! Mas eu não admito que ninguém fale mal dele!” Começou a chorar. Disse ao pai atônito:

– Um carinho que ele me faça, um só, vale todo o meu dinheiro! Caiu de joelhos; soluçava, com o rosto mergulhado nas duas mãos:

– Quando ele me beija, eu sou a mais feliz das mulheres! A mais feliz, papai!

Temos aqui o caso hipotético para o nosso querido aluno de direito penal: a mulher, de alta classe, não sente nenhum medo de denunciar o marido agressor, pois, na verdade, este que é sustentado por ela. O caso não é de necessidade socioeconômica, mas sim de uma necessidade psíquica, que a vítima pode, mas em nenhuma hipótese quer, abandonar. A provocação que se faz é a mesma: qual é o papel do direito nessa situação?

Aqui nosso estudante poderia evocar mais um cliché contemporâneo, o da “dependência emocional”, para justificar a prisão do agressor. Para a vítima, tratamento com antidepressivos, já que as camisas de força saíram de moda. Porém, aqui se pode fazer uma provocação bem menos óbvia, e talvez mais essencial ainda para a formação de uma lógica penal contemporânea: o desejo é um bem jurídico passível de tutela?

E, veja bem, não me refiro aqui ao desejo limpinho de editorial da Marie Claire. Refiro-me aqui ao “desejo triste”, a que se referia o próprio Nelson, à mais pura “pulsão de morte” freudiana. É diante desse desejo que se pergunta: o Estado tem o dever de reprimir os impulsos autodestruitivos pelo bem da vítima?

Ora, quase ninguém discute nas faculdades de direito (ainda bem), a criminalização de eventos de sadomasoquismo, por exemplo, afinal de contas, “o que nós temos a ver com isso?”. Entretanto, o questionamento que aqui se traz aos penalistas é o de pensar quais são os limites que devem (se é que devem) ser dados aos desejos autodestrutivos quando estes dizem respeito à um assunto tão sensível quanto o trazido no conto apresentado. A escolha de uma história literária de violência doméstica foi proposital, na medida em que este seria um crime de ação pública incondicionada, ou seja, é obrigação do Estado agir nesses casos, mesmo sem a anuência da vítima. Longe de querer chegar a uma solução definitiva sobre o tema, minha intenção é, a partir da literatura de Nelson Rodrigues, apenas instigar o leitor à um raciocínio próprio, longe da discussão dogmática presente nos manuais de direito penal. Afinal de contas, toda dogmática possui pretensão de unanimidade. E, bem, toda unanimidade...


REFERÊNCIAS

RODRIGUES, Nelson. Caça dotes. In: A Vida como ela é.... Nova fronteira: Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/A_Vida_Como_Ela_%C3%89/6bGuDwAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&pg=PT52&printsec=frontcover

TAFAREL, Marilsa. O desejo segundo Jacques Lacan. 2019. Disponível em: https://www.sbpsp.org.br/blog/o-desejo-segundo-jacques-lacan/


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