A vitória do nazismo? – Carl Schmitt e os mitos fundadores das Constituições
- Luca Zulato
- 2 de dez. de 2024
- 6 min de leitura
Alguns autores são capazes de suscitar as paixões mais rasteiras pela mera menção ao nome. A simples tentativa de debater o texto desses autores, apartado de qualquer julgamento moral, pode gerar o mais alto grau de ojeriza ao acadêmico intelectualmente limitado. Esse é o caso de Carl Schmitt, que, por azar, é objeto de estudo da área das ciências humanas com maior incidência de acadêmicos intelectualmente limitados, qual seja, o direito. Por sorte, nossos irmãos esclarecidos da ciência política são capazes de debater o autor da forma que se deve, afinal de contas um cientista político preocupado com a moral é uma aberração tão grande quanto um jurista preocupado com a verdade.
Estudantes de ciência política debatem autores como Maquiavel abertamente. Estudantes de filosofia debatem autores como Heidegger abertamente. Mas dê um único gênio a um estudante de direito e ele será reduzido a um imbecil tão grande quanto o seu leitor. Se não for citado no voto de algum Ministro do STF, não é gênio. Genial é escrever livros inteiros para nos dizer para quê serve um Embargo de Declaração. Autores como Schmitt, não. Estes são vermes que devem ser jogados na lata de lixo da história.
Para não gastar mais linhas de pura destilação de ódio contra meus colegas, vamos ao tema da coluna: o conceito de Constituição de Schmitt e os seus diálogos com o contexto constitucional contemporâneo.
Primeiramente, para compreender a concepção de Schmitt (assim como a de qualquer intelectual de qualquer área, época ou lugar) é necessário entender o contexto histórico e social em que o mesmo está inserido. A primeira publicação conhecida do livro data de 1924, momento em que a Alemanha, sob a República de Weimar, vivia um momento de extrema instabilidade política, social e econômica. O recente processo de unificação alemã, a destruição trazida pela Primeira Guerra e as crises econômicas causadas pelas sanções abusivas do Tratado de Versalhes foram determinantes para tornar a Alemanha do período um Estado completamente fragmentado do ponto de vista social e político.
É nesse contexto de fragmentação que Schmitt delimita um dos principais problemas a serem resolvidos pelo seu conceito de Constituição, além da questão da validade: a unidade, aqui entendida em um sentido amplíssimo. Para Schmitt, a Constituição não se resumiria a um mero conjunto de normas que poderiam ser alterados por um processo legislativo especial, mas seria a própria “alma” do próprio Estado:
The state does not have a constitution, which forms itself and functions “according to” a state will. The state is constitution, in other words, an actually present condition, a status of unity and order. The state would cease to exist if this constitution, more specifically, this unity and order, ceased to exist. The constitution is its “soul, its concrete life, and its individual existence (SCHMITT, p. 60)
Em confronto direito com os positivistas de sua época, especialmente Kelsen, Schmitt é um intelectual preocupado com as crises de seu tempo e local. Entretanto, a história, por razões óbvias, deu mais ouvidos a Kelsen (será mesmo?). Porém, há de se perguntar: dadas as circunstâncias, não seria Kelsen um completo lunático em sua época?
Veja bem, em uma realidade de profunda cisão do ponto de vista político e social, a proposta de Schmitt dialogava muito mais com as preocupações estadistas – e aqui é preciso deixar muito claro que estamos pensando em uma lógica de Estado – do seu tempo. Enquanto Kelsen procurava em uma estética transcendental, advinda de um idealismo pós-kantiano, os fundamentos para a construção de um texto normativo derivado de um pressuposto lógico, Schmitt olhava para a materialidade de sua época e concluía que o texto de nada serviria se este não possuísse a função de representar a unidade (política, social, nacional, etc.) daquele Estado completamente dividido.
The constitution, therefore, is nothing absolute insofar as it did not originate on its own. It is also not valid by virtue of its normative correctness or on the basis of its systematic completeness. The constitution does not establish itself. It is, rather, given to a concrete political unity (SCHMITT, p. 76)
Esse mesmo questionamento pode ser suscitado ao se pensar no debate a respeito do guardião da Constituição. Enquanto Kelsen, de uma forma inegavelmente a frente de seu tempo (e talvez esteja justamente aqui o problema), defendia a posição de um Poder Judiciário como guardião, mesmo sabendo da total falta de representatividade que essa instituição possuía, Schmitt novamente olha diretamente para o seu próprio tempo e determina: o guardião deve ser o chefe do Poder Executivo, o maior símbolo político de unidade do Estado alemão. Novamente, Schmitt, ao contrário dos seus críticos superficiais, não era um imbecil, mas um intelectual que dialogava diretamente com o seu tempo.
É diante dessa pretensão de unidade que Schmitt estabelecerá o seu fundamento de validade constitucional. Dialogando diretamente com a noção sociológica de Lassalle, Schmitt estabelecerá como o princípio de validação de uma ordem constitucional a vontade decisória do grupo político que a instituiu. Aqui Schmitt não faz valoração quanto à forma de governo: em uma monarquia, a vontade política do rei; em uma democracia, a vontade política do povo. No caso da caduca democracia em que Schmitt se encontrava, seria a vontade do “povo alemão” o fundamento de validade da Constituição de Weimar.
Não é preciso dizer que a noção de “povo alemão” ganhará contornos extremamente problemáticos posteriormente. Tendo Schmitt aderido ao partido nazista, o conceito de povo aqui descrito é evidentemente atrelado a uma noção étnica, pautada nos ideais de superioridade racial que caracterizavam o partido. Contudo, aqui eu questiono se não é justamente a noção de um fundamento político que permeia o imaginário dos mitos fundadores das Constituições contemporâneas.
Retomando o antagonismo com Kelsen, parece bem evidente, até mesmo para um leigo, que as suas formulações foram mais recepcionadas pelos movimentos constituintes contemporâneos. Evidentemente existem razões suficientes para se afirmar isso. Basta abrir a Constituição de 1988 em seu artigo 102 para testemunhar a vitória inquestionável do jurista austríaco: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”.
Porém, o leitor se engana em achar que a minha preocupação é com o formalismo jurídico. Pelo contrário, minha preocupação é com a estética jurídica. E, falando em texto constitucional, nada nele desperta mais o senso estético do que o seu preâmbulo, justamente por não haver normatividade nenhuma presente ali. Curiosamente, Schmitt tinha um apreço especial pelo preâmbulo da Constituição de Weimar, já que nele estavam contidos os fundamentos inalteráveis do Estado alemão, como a sua organização e forma de governo, coisas estas que Schmitt considerava não como meras “normas constitucionais”, mas a substância da Constituição (com ‘C’ maiúsculo).
No caso brasileiro, o preâmbulo contém outra coisa não menos importante: o mito fundador da nova ordem institucional, e é nele que Schmitt tem, talvez, a sua vitória de Pirro. No momento em que se lê: “Nós, representantes do povo brasileiro (seja lá o que isso queira dizer), reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático (...) (blábláblá) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”, no momento em que vê de Ulisses Guimarães na tribuna da Câmara levantando aquele pedaço de papel e declarando promulgada a “Constituição Cidadã”, é possível questionar diante disso tudo: qual é a estética da nossa fundação constitucional? Seria ela uma estética lógico-jurídica Kelseniana, ou seria uma estética Schmttiana, a vontade de um grupo que rompe com um status quo ditatorial e impõe a sua decisão política fundamental para a unidade governada? E eis a provocação mais ululante: nós devemos a concepção do nosso imaginário jurídico-político a um nazista?
Obviamente, a nossa Constituição em nada se assemelha ao que queria Schmitt em suas intenções totalitárias (seria leviano afirmar o contrário). Mas, novamente, nós estamos tratando aqui de uma lógica de Estado e, dentro do jogo democrático, ao qual o Estado brasileiro se submete, a criação de mitos talvez seja infinitamente mais importante como mecanismo de coesão social do que a normatividade de um texto legal. Talvez seja duro para o nosso estudante moralista admitir, mas os mitos em que cremos são todos filhos da barbárie que nós fingimos, em uma falsa humildade, nos distanciar. E, bem, já dizia outro filósofo que outrora foi tratado também como um reles nazista: humildade é moral de verme.
REFERÊNCIA
SCHMITT, Carl (2008). Constitutional Theory. Editado e traduzido por Jeffrey Seitzer. Durham and London: Duke University Press.
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