Ainda sobre o constitucionalismo feminista: o que é isso mesmo?
- Christine Peter
- 11 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
O constitucionalismo feminista é uma expressão cujo significado ainda está sendo consolidado tanto no Brasil[1], quanto em outros países[2], por autoras acadêmicas que defendem a perspectiva de gênero como um método integral que direciona a hermenêutica das normas constitucionais para aspectos que o Direito Constitucional Contemporâneo sombreia ou até mesmo exclui e, não raras vezes, marginaliza.
Trata-se de uma postura hermenêutica do constitucionalismo inclusivo, ou seja, de um modo de lidar com os problemas jurídico-constitucionais os mais diversos, por meio e com objetivo de estimular uma visão plural, aberta e tolerante dos direitos fundamentais de todas e todos.
Os pressupostos teóricos do constitucionalismo feminista no Brasil, principalmente porque a formulação de uma teoria, que se pretenda consistente em suas premissas epistemológica e metodológica, depende de um diálogo com os conceitos de Constituição radical[3] e plural.[4] Para isso reputo importante registrar que são relevantes e imprescindíveis para a primeira fase de reconhecimento dos pressupostos do constitucionalismo feminista, os conceitos de democracia plural e democracia radical de Chantal Mouffe e Ernesto Laclau.[5]
Firme na promessa constitucional de 1988 de que o Estado Democrático e Constitucional de Direito também constitui o direito fundamental à igualdade de gênero como um de seus pilares, é preciso ter em mente as lições da Professora Vera Karam de Chueri, quando afirma que a Constituição contém promessa que “abala os horizontes estáveis das nossas expectativas, transgredindo o possível e o concebível, indo além do que é visível e previsível e que não é propriedade de algum povo escolhido, mas de todos. Assim, é desde a promessa que o real se instala.”[6]
Muito embora a expressão ‘constitucionalismo feminista’ já faça parte do léxico acadêmico internacional[7], ainda não se tem uma doutrina brasileira robusta[8] de onde se possam extrair os conceitos, métodos, competências e habilidades necessárias à sua consolidação.
A denúncia de que os paradigmas contemporâneos revelam-se inadequados e insuficientes para o século XXI, porque coloca apenas uma parcela da humanidade como referência de universalidade, já está posta, porém, é ainda urgente a conscientização das cidadãs e dos cidadãos de que a igualdade de gênero, como princípio fundamental estruturante de nossa sociedade constituída, somente poderá ser uma realidade diante do inexorável respeito ao outro e ao diferente.
Autoras como Beverley Baines[9], Ruth Rubio-Marin[10], Donna Greschner[11] e Nilda Garay[12] sustentam teoricamente a proposta de uma teoria constitucional feminista, a qual desafia, constrange e fornece os primeiros aportes científicos para o constitucionalismo feminista.
Confrontada pela pergunta feita por Donna Greschner[13] ao questionar se as Constituições também são feitas para as mulheres, é possível perceber, sem muito esforço investigativo, que a resposta afirmativa, automática e solene, vai perdendo a sua força à medida em que os dados de direito constitucional comparado anunciam a insatisfatória e persistentemente ínfima participação das mulheres nos processos constituintes, nos parlamentos nacionais e nas supremas cortes dos diferentes períodos históricos de diversos países, incluindo o Brasil.[14]
O constitucionalismo feminista é uma construção coletiva que está movimentando mentes e corações em direção à concretização da igualdade de gênero, expressamente prevista no artigo 5º, I, da Constituição da República. É necessário, sendo imprescindível a conscientização de que a Constituição de cada país é também a Constituição constituída, feita e vivida por mulheres.
E para que a Constituição seja efetivamente de e para mulheres, é necessário interpelar ativistas, advogadas, juízas, promotoras, defensoras e acadêmicas para jogar luzes sobre o que está em pauta: é necessário questionar não apenas se as constituições foram constituídas também para as mulheres, mas, antes, quando e como garantir que tais Constituições reconheçam e promovam os direitos fundamentais das mulheres, especialmente, os direitos políticos fundamentais das mulheres brasileiras.
[1] Por todas vide: SILVA, Cristina Telles de Araújo. Por um constitucionalismo feminista: reflexões sobre o direito à igualdade de gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ..
[2] Consulte-se o primoroso trabalho de MONTAÑEZ, Nilda Garay. Constitucionalismo feminista: evolución de los derechos fundamentales en el constitucionalismo oficial, in Estudios en homenaje a la professora Julia Sevilia Merino. Disponível em: http://feministasconstitucional.org/wp-content/uploads/2016/07/00_Igualdad_y_democracia_llibre_homenatge_JS-1.pdf Acessado em 20.12.2018 Destaca-se também: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012.
[3] Para Vera Karam: “Uma Constituição radical é aquela que não se conforma aos mecanismos liberais de mútua negociação entre os poderes constituídos, arriscando-se a ser mais do que isso, ou seja, objeto e sujeito da política democrática. Os direitos estão na Constituição, na medida em que ela permite a sua constante reinvenção e demanda (dos direitos). Uma Constituição radical não sintetiza a tensão entre poder constituinte (democracia) e poderes constituídos: ela é precisamente isso, a tensão!” Cf. CHUEIRI, Vera Karan de. Constituição Radical – uma ideia e uma prática, in Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 58, p. 25-36, 2013.
[4] Para Peter Häberle, no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível identificar um número fechado de intérpretes oficiais da Constituição. Cfr. HÃBERLE, Peter. Pluralismo y Constitucion: estudios de Teoria Constitucional de la sociedade abierta. Estudio preliminar y traducción Emilio Mikunda. Madrid: Editorial Tecnos, 2002.
[5] LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Sujeito da política, política do sujeito. In: Política Hoje, 4, 7(4): 9-28., 1997; ______. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Buenos Aires: Nueva Visión, 1993; ______. Hegemony & socialist strategy: towards a radical democratic politics. London and New York: Verso, 1985.
[6] CHUEIRI, Vera Karan de. Constituição Radical – uma ideia e uma prática, in Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 58, p. 25-36, 2013.
[7] Por todas vide: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012.
[8] Exceção à assertiva é o trabalho de Cristina Telles: “Por um constitucionalismo feminista – reflexões sobre o direito à igualdade de gênero, dissertação de mestrado – Uerj; Orientadores: Daniel Sarmento e Jane Reis Pereira, 2016.
[9] Feminist Constitutionalism – Global Perspectives. New York : Cambridge University Press, 2012.
[10] RUBIO-MARIN, Ruth. Toward a Feminist Constitutional Agenda, in The gender of constitutional jurisprudence, Cambridge University Press, 2010.
[11] GRESCHNER, Donna. “Can Constitutions be for Women too? , in Dawn Currie and B. Maclean, eds. The Administration of Justice, Saskatoon: University of Saskatchewan Social Research Unit, 1986.
[12]MONTAÑEZ, Nilda Garay. Constitucionalismo feminista: evolución de los derechos fundamentales en el constitucionalismo oficial, in Estudios en homenaje a la professora Julia Sevilia Merino. Disponível em: http://feministasconstitucional.org/wp-content/uploads/2016/07/00_Igualdad_y_democracia_llibre_homenatge_JS-1.pdf Acessado em 20.12.2018.
[13] GRESCHNER, Donna. “Can Constitutions be for Women too? , in Dawn Currie and B. Maclean, eds. The Administration of Justice, Saskatoon: University of Saskatchewan Social Research Unit, 1986, p. 20.
[14] Muitas pesquisas já tabularam estes dados. Por todas vide: http://maismulheresnopoderbrasil.com.br/ Acessado em 20.12.2019.
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