Congresso Nacional (fail) experience: Bolsonaro da Shopee, Jackie Chan Baiano e Axé Music.
- Luca Zulato
- 10 de mar.
- 7 min de leitura
Nota do autor: o texto a seguir trata-se de uma crônica, com profunda inspiração em vanguardas jornalísticas. Dessa forma, é importante deixar claro que, além de se tratar de uma narrativa real e de trazer informações verdadeiras sobre o funcionamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a linguagem coloquial, a subjetividade e a parcialidade do autor fazem-se presentes justamente em decorrência do gênero adotado. Quaisquer colocações aqui presentes dizem respeito única e exclusivamente ao autor, e não necessariamente a mais nenhum membro do Jornal Três.
Eu juro, leitor, por tudo que você considera mais sagrado, que eu gostaria, do fundo da minha alma, que esse texto fosse mais útil para a sua vida. Mas, não, esse país não é para amadores. Não obstante, também juro ao leitor que o texto trará reflexões sobre cidadania, democracia, processo legislativo ou qualquer coisa que justifique minha permanência neste jornal. Paciência, meus caros, é uma virtude.
A ideia do presente texto surgiu após ler uma recente coluna na Folha de São Paulo do filósofo Luiz Felipe Pondé, em que o mesmo dizia: “Ver sessões do legislativo é como ver um espetáculo de circo barato. Só falta a mulher de barba, o selvagem que come frango com os dentes, engolindo as penas, a cobra que fala, o trapezista que morre quebrando o pescoço”. Cético como sou, não acreditei na sátira do filósofo (o que tirar de bom de um escritor satírico, não é mesmo?). Precisava ver para crer, então anotei a ideia de um dia assistir a uma sessão legislativa de perto. Não, me recusei a assistir pela TV Câmara, isso qualquer idiota faria. Precisava vivenciar aquilo ao vivo e a cores, descobrir qual era a sensação de estar presente naquele ambiente, fazer um jornalismo gonzo sóbrio... e, bem, a experiência não deixou de ser um pouco alucinógena, ainda assim.
Trabalhar na Câmara dos Deputados ajudou muito nos meus objetivos. Tinha a ideia guardada, mas não tinha em mente o dia em que iria executá-la. Eis que recebo alguns sinais divinos que darão início a essa viagem alucinógena. Certo dia, que eu pensava ser uma tarde de trabalho qualquer, após passar pelo detector de metais na entrada da Câmara, me deparo com essa figura bestial, dantesca, que muito se aparentava ao último ex-presidente, porém com 1 litro de botox na cara e umas 15 arrobas a mais. Ao redor, uns 10 abobados tirando fotos e gravando vídeos com o manequim ambulante.
“Aê, galera, tô aqui com o Bolsonaro!!”, dizia um dos abobados, enquanto filmava o auge da sua vida.
“Mas será possível?...”. Por alguns segundos, minha mente entrou em curto: de perfil, a aberração falsa realmente lembrava a original. Quando olho melhor, vejo estampado na camiseta do sujeito: “@bolsonarodashopee”. Essa é aquela típica cena que nem mesmo Shakespeare conseguiria conceber para fazer o leitor se questionar: “o quão miserável é a existência de alguns seres?”.
Anestesiado com essa experiência transcendental, fiquei o resto da tarde com esse questionamento ressoando na cabeça. Ao fim do serviço, recebo o segundo sinal divino de que aquele seria o dia certo para executar a ideia. A televisão da sala estava ligada na TV Câmara e, durante a sessão que estava sendo transmitida, eis que surge uma nova figura burlesca: um sujeito de terno, chapéu de vaqueiro e um clipe de gravata com o formato de um fuzil AK-47, esbravejando sobre a “incompentência” (sic) do Presidente da República no aumento do preço da gasolina, durante o debate sobre o PL 3987/2023, que versava sobre a impenhorabilidade de equipamentos de pessoas com deficiência... Diante disso, pensei que não havia melhor hora para provar que o Pondé estava errado e de que esta é uma instituição séria e respeitável.
Já arrumava as coisas para ir embora enquanto cogitava se eu deveria dar uma passada no Plenário, e então ocorre uma feliz coincidência quando um colega de trabalho me questiona se eu tenho vontade de assistir a uma sessão. Considerei esse um terceiro sinal divino e prontamente aceitei o convite. Fui guiado pelo meu colega (chamemo-lo de Virgílio) pelos labirintos da Câmara dos Deputados até a área que dá acesso às galerias (aquelas arquibancadas acima do plenário) das duas Casas. Durante o caminho, questiono Virgílio sobre a inquietação de mais cedo:
“Já ouviu falar do Bolsonaro da Shopee?”, perguntei.
“Quem?”, questionou Virgílio estupefato.
“Um cara que parece uma boneca erótica do Bolsonaro”
“Ah, tipo o Jackie Chan baiano?”
“Quem?”
“Um cara que é sósia do Jackie Chan... ele faz vídeos junto com o Will Smith baiano...”.
Após essa conversa que enriqueceu meus horizontes sobre a cultura brasileira mais do que qualquer seminário de humanidades que eu tenha participado em 6 anos de UnB, chegamos à porta das galerias. Virgílio encontra-se ali com um rosto conhecido (chamemo-lo, obviamente, de Caronte) e pergunta se poderíamos passar para ver a sessão. Caronte responde que poderíamos ir até o final do corredor, onde ficaríamos atrás daqueles vidros espelhados que dão a volta no plenário, mas que eu seria barrado se quisesse subir na arquibancada. Viver o cotidiano dos órgãos públicos nos faz criar algumas percepções sobre o mundo. Uma delas que eu criei foi a de que Kafka não é um autor trágico, mas sim satírico, portanto não há o que levar a sério em situações kafkianas como esta. Conformei-me com a já habitual impenetrabilidade das instituições e aceitei ir até às vidraças.
Por trás dos vidros espelhados pude ver o Plenário e os nobilíssimos deputados. Reconheci um ou dois gatos pingados. Enquanto o presidente da sessão (o Deputado Hugo Mota) falava algo que aparentava ser importante, os deputados conversavam sobre qualquer bobagem. Ouço Caronte dizer:
“Tá vendo aí? O cara falando no microfone e os outros nem aí. Os caras ficam aqui o dia inteiro xingando a mãe do outro e depois vão pro restaurante, pro bar, pro puteiro todos juntos. E depois o povo fica aí brigando com o pai, o tio, o irmão por causa desses caras...”.
A voz dos bastidores é capaz de transformar qualquer ópera em pastelão. Tirei algumas fotos da cara de alguns figurões, das arquibancadas vazias e pedi para ver o Senado. Confesso, meu impulso kafkiano foi mais forte, e perguntei a Caronte o porquê de as arquibancadas estarem inacessíveis. Aparentemente, pelo que inferi da resposta, nossos nobilíssimos parlamentares estão usando o 8 de janeiro como justificativa para barrarem aquele sujeito ignorante, burro, tacanho, mesquinho, pedestre, apedeuta, rampeiro que é responsável pela morte de todas as democracias mundo à fora... isto é, o povo. Talvez 5 minutos de conversa com Caronte faria aquele lixo acadêmico estadunidense (com o perdão da redundância) chamado Como as democracias morrem? sair da cabeceira de todo aluno de graduação que quer pagar de intelectual.
Do Senado há menos ainda a se dizer sobre a experiência, pois a sessão já havia se encerrado. A situação, porém, é a mesma, o povo não pode assistir às sessões in loco. A única coisa a se destacar da visita é o teto da Casa, que, segundo o Senado Notícias, é formado por “placas metálicas [que] servem para quebrar a luz e para melhorar a repercussão e o volume do som no ambiente, num belo efeito imaginado por seu idealizador, o arquiteto Oscar Niemeyer”... sim, essa foi a única informação interessante que eu consegui extrair da visita, estou tão decepcionado quanto você, leitor. Mas, o teto é, de fato, muito bonito...
Depois da decepção de ter sido barrado, voltei com Virgílio para a sala onde trabalho. Ao olhar novamente a televisão ligada na TV Câmara, descubro a importantíssima discussão que fui impedido de acompanhar por razões de segurança nacional: a votação da Urgência (um “rito processual que dispensa exigências, prazos ou formalidades regimentais, para permitir que uma proposição seja apreciada de forma célere até a decisão final sobre ela”) do PL 4187/2024, que versa sobre a instituição do Dia Nacional da Axé Music. Em outras palavras, o Projeto tratava do reconhecimento de uma legítima manifestação popular, mas apenas esqueceram-se de convidar o povo. Alguns trechos do debate entre os engravatados:
“Por isso que ele está desesperado para censurar as redes sociais... para o povo não mostrar a verdade do que está acontecendo com o Presidente da República irresponsável, bebum, do Lula!”, opinou sabiamente um deputado do PL.
“Você não pode pegar um tempo pra falar sobre o dia do Axé Music e fazer um discurso contra o Presidente da República... porque desse jeito todo mundo vai pedir o tempo pra falar sobre a conjuntura nacional, pra falar sobre a prisão do Bolsonaro que vai acontecer daqui à pouco...”, rebateu de forma extremamente madura uma celebridade do PT.
“Eu queria que essa fantasia fosse eterna/ Quem sabe um dia a paz vença a guerra/ e viver será só festejar”, cantou de forma muito apropriada um deputado do PSOL.
“Estou indignado... o Brasil está em frangalhos, botando carimbo em ovo, déficit público recorde, empresas com rombo... e aí todo mundo, 513 deputados, pagam passagem aérea, tem um salário, pra vir aqui e decidir O QUÊ?! DIA NACIONAL DO AXÉ!”, esbravejou um engomadinho do NOVO.
Ao fim e ao cabo, a urgência foi aprovada com 266 votos favoráveis contra 140 desfavoráveis. Gostaria apenas de expressar aqui meu total desprezo contra as duas abstenções que foram registradas. Já que citei a Divina Comédia, é importante lembrar que a antessala do Inferno está reservada para aqueles que foram mornos durante a vida e se mantiveram neutros em momentos de crise. Que a História nunca apague os nomes desses dois ímpios que se recusaram a tomar partido frente a Grande Crise do Axé Music de 2025!
Diante disso tudo, não há mais o que dizer: as sessões do legislativo são mil vezes piores que um espetáculo de circo barato - ao menos o circo eu consigo pagar para assistir. Ponto para o filósofo satírico. Finda a jornada frustrada, terminei a tarde assistindo com Virgílio os vídeos do Jackie Chan Baiano. Pensando bem, que as coisas se mantenham do jeito que estão: eles lá e nós cá. O quão miserável é a existência de quem leva esse circo à sério! Viva a Axé Music! Viva os Jackie Chans e Will Smiths Baianos! E que não haja nenhuma urgência para que esses palhaços baratos reconheçam a força da nossa cultura. Torçamos para que um dia o desprezo contra o povo possa ser recíproco.
REFERÊNCIAS
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