Nos bastidores da IA, há trabalho precarizado
- Letícia Pádua
- 9 de abr.
- 4 min de leitura
É fato que a Inteligência Artificial (IA) torna-se cada vez mais presente no cotidiano não apenas do Judiciário brasileiro, quanto em diversos âmbitos da vida civil. Caracteriza-se como atraente, eficiente e é guiada por uma retórica que a qualifica como uma modernização inevitável. Este texto não tem o objetivo de analisar propriamente o conflito entre os apologéticos da IA versus os seus opositores, dado que o nosso objetivo é explorar o trabalho operante nos bastidores da IA e como esse trabalho humano subjacente se agrega às características de trabalho precarizado.
O mundo do trabalho é mutável e diante de suas metamorfoses é possível localizar fluxos de revoluções metodológicas que visam – em tese – o aumento da produtividade do labor. A contaminação crescente do uso instrumental da Inteligência Artificial (IA) integra-se à uma rede intrincada de causas/consequências que gravitam tanto em torno de questões ambientais, quanto em relação à flexibilização de direitos trabalhistas.
Nesta coluna, o objetivo é explorar, parcialmente, a invisibilidade do trabalho humano operante nos bastidores das entranhas da IA –, mais especificamente vamos dar um passo para compreender os turkers (mão de obra terceirizada da plataforma Amazon Mechanical Turk - AMT). Nesse sentido, engana-se quem afere objetividade absoluta derivada da atuação das IAs, posto que, conforme veremos, é imprescindível o trabalho humano responsável por coordenar a viabilidade da operação desses sistemas.
A infiltração das IAs coexiste com as dinâmicas preexistentes da gig economy –, a qual é um dos tentáculos do capitalismo de plataforma. Esse verdadeiro mosaico trabalhista gera um cenário favorável para a proliferação de trabalhadores terceirizados prestadores de serviços remotos crowdsourcing, cuja qualidade que me salta aos olhos é a seguinte: “a maioria das tarefas na AMT não explica para que serão usadas” (Moreschi; Pereira; Cozman, 2020), de maneira que o produto desse trabalho de subsolo é uma alienação de seus prestadores de serviços.
Lançar luz sob essa força de trabalho encoberta significa investigar o subsolo trabalhista a que estão submetidos os turkers. Nessa proposta, a pesquisa referenciada (Moreschi; Pereira; Cozman, 2020) nos convida a mergulhar no microcosmo da AMT e como as retóricas de meritocracia neoliberais estão arraigadas a esse modelo trabalhista flexibilizado –, o qual passa a ser visualizado como positivo, afinal ninguém quer ser considerado obsoleto ou ficar de fora da festa do futuro moderno do trabalho.
Dentre as atividades listadas desenvolvidas pelos turkers, estão:
Na pesquisa, perguntamos qual foi a tarefa mais estranha e a mais interessante que esses turkers brasileiros haviam realizado na plataforma. Isso ajuda a entender com mais precisão o trabalho diário dos turkers: um dia composto por muitas tarefas diversas. Os HITs que descreveram são um imenso conjunto de ações bastante peculiares:
“Analisar imagens de zebras”; “jogar videogame por 1 hora”; “repetir o que a voz do Google e da Alexa falam”; “assistir filmes e avaliá-los”; “identificar flores e frutas em plantas brasileiras”; “desenhar caixas em ratos de laboratório em diferentes fotos”; “marcar partes de corpos de pessoas lutando”; “responder verdadeiro ou falso em um questionário sobre maconha”; “circular quais funcionários em fotos estavam usando capacete”; “localizar endereços comerciais difíceis de serem encontrados em seus websites originais”; “fazer expressões faciais na câmera do computador”; “mapear móveis e pisos em uma cozinha”; “modificar frases escritas de forma imperativas como "tocar pagode na sala" para "dar play em uma música de pagode na sala”; “avaliar tweets no twitter”; “transcrever recibos comerciais”; “descrever o que se vê numa foto do Tom Hanks”; “tirar fotos dos olhos”; “filmar 40 gestos com a mão”; “dançar na frente da câmera”; “contar quantos grãos de milho havia em uma espiga” etc.
É curioso como, apesar de parecer (de início) um trabalho banal e facilmente executado, são atividades que produzem efeitos prejudiciais a longo prazo, posto que, além de coletar dados desses trabalhadores –, a exemplo das ações: repetir o que a voz do Google e da Alexa falam; fazer expressões faciais na câmera do computador; tirar fotos dos olhos; filmar 40 gestos com a mão; danças na frente da câmera –, também os expõem a potencialmente entrarem em contato com conteúdos sensíveis capazes de acarretar “consequências negativas para a saúde desses trabalhadores” (Moreschi; Pereira; Cozman, 2020, p. 19).
À vista disso, as peculiaridades as quais gostaria de ressaltar são: dentre os trabalhadores envolvidos na coleta de dados, 43% não possui outro trabalho; 66,1% encontra-se em situação de desemprego a mais de um ano. Junto a isso, as tarefas demandadas são variáveis, podendo envolver desde análises simples até tarefas de moderação de conteúdo sensível.
Portanto, a suposta objetividade fria das IAs mascara o labor humano precarizado por trás de sua operatividade, de modo que seja sua invisibilidade, seja sua alienação perante as tarefas repassadas aos turkers, demonstra os riscos de se negligenciar a perceptível infiltração dessas tecnologias no mundo do trabalho. Os impactos mais vorazes atravessam, sobretudo, a manutenção de direitos trabalhistas calcados em dignidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
IRANI, Lilly. White House/NYU AINow Summit Talk: “The Labor That Makes AI Magic”. Quote UCSD Edu, 19 ago. 2016. Disponível em: https://quote.ucsd.edu/lirani/white house-nyu-ainow-summit-talk-the-labor-that-makes-ai-magic/. Acesso em: 23 ago. 2016.
MORESCHI, Bruno; PEREIRA, Gabriel. COZMAN, Fabio G. Trabalhadores brasileiros no Amazon Mechanical Turk: sonhos e realidades de trabalhadores fantasmas. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 44-64, abr./jul. 2020.
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