O jurista e o monstro: Comparativo entre o direito sucessório inglês e brasileiro a partir da obra de Robert Louis Stevenson
- Luca Zulato
- 3 de fev.
- 5 min de leitura
Atualizado: 13 de fev.
O direito sucessório brasileiro é uma completa monstruosidade. Nascido no seio de uma sociedade oligárquica que buscava a todo custo manter o patrimônio acumulado dentro da mesma família, as limitações legais para dispor sobre o próprio patrimônio após a morte mantêm-se rígidas e inertes desde as primeiras formulações sobre o tema, presentes nas Ordenações Filipinas de 1603. O projeto de reforma do Código Civil, que à princípio trouxe esperanças em relação à possíveis mudanças nessa lógica arcaica, teve a capacidade de fazer o direito sucessório andar na contramão: se até o momento o cônjuge, que nós poderíamos considerar a figura mais “estranha” do núcleo familiar, possui uma posição privilegiada na ordem sucessória, a reforma pretende excluir essa figura dos herdeiros necessários, o que faz com que os descendentes e ascendentes tenham ainda mais força dentro da sucessão legítima e que a lógica de conservação familiar do patrimônio mantenha-se tão presente quanto há 400 anos.
Porém, essa não é nem de longe a pior das aberrações. Lembro-me que na primeira aula de direito das sucessões, enquanto o professor explicava o caminho da sucessão legítima, me veio a seguinte dúvida: “mas esse caminho só é seguido caso não haja testamento, né? ”, ao que, para minha surpresa, foi respondido que “não... na verdade, o testamento é a última coisa que a gente observa”, ou, em termos técnicos: “CC, Art. 1.857, §1°: A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento”. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir a última das verdades: o brasileiro não tem nem direito de morrer em paz! O primeiro estágio foi a negação: “no primeiro mundo deve ser assim também”, pensei... e, bem, nada melhor do que uma boa literatura para acabar com um mundo de ficções.
Creio que quase todos conhecem a história de Dr. Jekyll e de sua outra face, Sr. Hyde, escrito por Robert Louis Stevenson em 1886. Caso o leitor não tenha o repertório de sequer ter assistido ao clássico episódio de Piu-piu e Frajola, eis o resumo (com spoilers, se é que isso faz diferença para uma obra do século XIX): dr. Jekyll, “médico, doutor em direito canônico e direito civil, membro da Academia Real de Ciências” (p.69), começa a levantar suspeitas de envolvimento com um jovem misterioso e horrendo, chamado Hyde, acusado de crimes bárbaros nos subúrbios da capital inglesa. Dizem as más línguas que os dois eram amantes, mas isso não vem ao caso por ora. Acontece que, no desenrolar da trama, descobre-se que, na verdade, o doutor Jekyll havia desenvolvido uma poção que o transformava em uma figura horrível e perversa, que era o próprio sr. Hyde. A obra levanta discussões acerca da natureza humana, a maldade inerente ao homem, a tensão entre id e superego e blábláblá...
Enfim, o que importa aqui é um detalhe que quase ninguém lembra: a obra gira em torno de um testamento. O sr. Utterson, advogado de Dr. Jekyll e uma pessoa com muito tempo livre, é o primeiro a investigar o envolvimento do médico com o jovem misterioso. Isso porque, após ouvir o relato de um amigo que teria testemunhado um homem chamado Hyde ter pisoteado uma criança e subornado as testemunhas que socorreram a vítima (pp. 61 - 68), Utterson lembrou-se de que já havia visto o nome do homem no testamento de seu cliente. Segundo consta, o testamento, escrito pelo próprio Dr. Jekyll:
Estabelecia que, no caso de morte de Henry Jekyll [...], todas as suas posses deveriam passar às mãos de seu “amigo e benfeitor Edward Hyde”; mas também que, no caso do “desaparecimento ou da ausência inexplicável do dr. Jekyll por prazo superior a três meses”, o referido Edward Hyde deveria de imediato assumir o lugar de Henry Jekyll, livre de qualquer ônus ou obrigação, excetuando o pagamento de pequenas quantias aos empregados domésticos do médico (p. 69)
Eis aqui algumas diferenças fulcrais que são possíveis de observar na comparação entre o direito sucessório brasileiro e britânico, e que apontam para uma evidente superioridade do segundo sistema. A primeira delas: o testamento pode ser escrito pelo próprio testador, no conforto de sua casa, devendo seguir apenas algumas formalidades, podendo ser guardado por um terceiro de confiança. Agora, imagine o leitor o anticlímax que Stevenson teria que lidar caso a história se passasse no Brasil. Primeiramente, no caso de um testamento público, Jekyll teria que passar pela humilhação de comparecer e aguardar na fila de um cartório para manifestar sua vontade frente a um tabelião de notas. O processo poderia ser feito de modo que ninguém, além do tabelião e das testemunhas, soubesse do seu conteúdo, porém o testamento só poderia ser aberto após a morte de Jekyll, o que o torna inútil para Hyde, já que ele também estaria morto, por óbvio. Em caso de desaparecimento com declaração de ausência de Jekyll, ainda seria preciso esperar 1 ano para a abertura do testamento e a transmissão definitiva das propriedades só se daria após um longo processo de 10 anos, algo que provavelmente frustraria Hyde e o faria matar o tabelião de notas (cena que, admito, seria muito gratificante de se ler).
Em contrapartida, seria possível fazer um testamento particular, mas Jekyll ainda teria que arranjar três testemunhas para validar aquele testamento, e Hyde não poderia se livrar delas depois, já que seria necessário que elas confirmassem a veracidade após a morte ou desaparecimento de Jekyll. Caso não haja testemunhas, o texto ainda poderia ser considerado válido à critério do juiz, algo que, na vida real, quase nunca acontece. Em suma: o testamento particular no direito civil brasileiro é uma completa inutilidade, e Hyde provavelmente entraria em depressão ao saber disso.
Além disso, a diferença mais gritante: o testador britânico pode dispor da totalidade do seu patrimônio em testamento, em contraposição aos ridículos 50% que o nosso Código Civil obriga a destinar aos herdeiros legítimos. Caso Jekyll fosse casado, ou tivesse filhos, ou tivesse pais vivos, ou tivesse algum primo que ele nem mesmo soubesse da existência, Hyde já perderia metade do patrimônio que lhe seria destinado. Diante disso, Jekyll, se fosse brasileiro, seria duplamente vítima: primeiro das barbaridades cometidas por Hyde e depois das barbaridades de uma legislação que não lhe permite sequer mandar no próprio patrimônio.
Evidentemente, o testamento poderia ser anulado em ambos os países, devido ao fato de que Hyde coagiu Jekyll para que se desse a redação desejada. Porém, suponhamos que Hyde tenha executado o crime perfeito e ninguém suspeite da sua influência sobre Jekyll na forma como o documento foi redigido. No Reino Unido contemporâneo, pouco se poderia alegar sobre o conteúdo da vontade do testador, podendo este estabelecer que o seu patrimônio pode ser dado a qualquer pessoa que se deseje. Porém, no Brasil, caso Jekyll fosse casado, o cônjuge poderia alegar justamente aquilo que é dito pelas más línguas: que Jekyll e Hyde teriam uma relação amorosa. Dessa forma, caso essa relação extraconjugal se comprovasse, qualquer disposição testamentária em favor de Hyde seria anulada, visto que, segundo o art. 1.801 do Código Civil: “Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários: [...] III - o concubino do testador casado”. E aqui está mais um aspecto da nossa legislação: o nosso direito sucessório é tão insuportavelmente rígido que não nem mesmo capaz de gerar um bom escândalo para o nosso entretenimento.
Dito isso, o que se pode concluir desse breve e parco comparativo é que o direito sucessório brasileiro, além de uma monstruosidade antiquada, é um terrível anticlímax para uma mente criativa. Tivesse O estranho caso do dr. Jekyll e sr. Hyde ocorrido em terras tupiniquins, talvez fosse melhor para o monstro manter-se escondido no âmago do médico do que se aventurar em uma empreitada burocrática para obter as propriedades do aristocrata. Suspeito que Hyde se tornaria um Joseph K. caso tentasse essa peripécia. Nas palavras do próprio Jekyll: “termino por sentir pena de Hyde” (p. 142).
REFERÊNCIA
STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro: o estranho caso de dr. Jekyll e mr. Hyde. 1ª edição. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015
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