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Rua de Matacavalos

Atualizado: 13 de fev.

Nos dias que se seguiram, crianças da rua quiseram se aventurar como se estivessem num livro de aventuras para saber o que havia na casa, o que foi desencorajado por todos seus responsáveis. A casa seguia a mesma. Sempre que um motoqueiro passava pela rua, as janelas se abriam, mas a moto nunca parava na casa. Passaram-se anos até que aquele motoqueiro entrasse ali, num terreno da União, passasse meia hora e saísse. Por causa do receio e da notificação ao Ministério Público, eu fui o primeiro a depor sobre a casa. O fato de eu sempre passar por ela para ir trabalhar me colocou como suspeito ou, no mínimo, uma boa fonte de informações.

Eu lhes disse o que sabia. Casa velha, suja e fétida. Sempre com a mesma aparência. Ao longo dos anos, algumas madeiras caíram. Prontamente me interromperam e perguntaram quais madeiras, mostrando-me uma imagem da casa. Apontei na fotografia e segui dizendo, agora um pouco mais nervoso. Depois disso, não me interromperam muito e eu já conseguia sentir que, pelo comportamento deles, não importava muito o que eu dissesse pois eles já tinham o que queriam de mim. Os vizinhos disseram que na infância havia moradores na casa, mas já há muito ninguém morava ali. Ninguém, por exemplo, já entrou nela.

Soube que a polícia foi até a casa e interditou a rua. Minhas passadas pela calçada direita haviam acabado. Passei a tomar outro caminho, na rua de baixo, onde não havia nada velho ou sujo. Confesso que senti falta da rua de Matacavalos. Já conhecia os moradores. Conversávamos sempre. Certa vez, adiantado para o trabalho, um dos moradores me convidou para tomar um café e eu aceitei. Cheguei atrasado nesse dia.

Na rua Nossa Senhora de Fátima, havia uma igreja, algumas casas, comércios locais e algumas pessoas conhecidas. Era uma rua mais ensolarada, com mais carros. Era mais urbana. Nela, eu era obrigado a usar as duas calçadas. Havia semáforo, moradores de rua e até um pipoqueiro por causa de um ponto de ônibus e escola duas ruas abaixo. Não gostava do Sol, nem da abordagem dos comerciantes, ainda que poucos. A vantagem era mesmo o cheiro horrível que não se exalava de casa alguma.

Logo que Matacavalos foi reaberta, voltei a usá-la. Desta vez, ninguém saiu na rua. Passei reto sem ver nenhum morador. Descobri que a polícia entrou na casa e não encontrou nada relevante. Os moradores da rua não tinham mais por que sair e fofocar. Estava tudo esclarecido. Os bombeiros foram com os policiais e tiraram vários ninhos de vespa e colmeias, além de pontos de água parada e madeiras já deterioradas por cupins. A casa já não era tão fedida e a aparência, ainda feia, não era desagradável.

Os moradores de rua da Nossa Senhora de Fátima, tomando conhecimento da casa que foi capa de jornal e matéria no telejornal local, assentaram-se na casa. No começo, foram dois. Depois, já eram sete. Pararam de chegar no dez. A casa já não era feia, era bem cuidada. Não era rica, mas era o suficiente para se ter uma vivência. Os moradores de rua ainda saíam para pedir esmola, mas também saíam para conversar comigo. No início, pareciam os comerciantes da rua de baixo: eles me abordavam sempre pedindo dinheiro. Com o tempo, passei a mostrar que poderia dar mais que dinheiro e me tornei amigo deles. Não de todos, mas de alguns. Muita coisa mudou nesse período. Os vizinhos já não falavam tanto comigo, mas, principalmente, passei a pegar a calçada esquerda.

Foram alguns dias assim até surgir uma placa na casa. Governo Federal e um leilão que seria realizado. Duas semanas depois a polícia despejou os moradores de rua daquela casa. Foi tudo tão rápido que eu mal pude presenciar todos os acontecimentos. Alguns eram antes e depois do meu trabalho. O leilão que seria realizado, conforme a placa dizia, era para melhorar a rede viária e a qualidade de vida da população. Nos jornais, a informação era que os moradores pediram pela intervenção. Não demorou para que a fofoca se espalhasse e descobrissem quem foi que pediu pela intervenção. Eram aqueles moradores com quem eu tanto conversava e que passaram a me ignorar. A polícia, em determinado dia, interrogou-me no meio da rua como se eu fosse o suspeito de algum crime. Demorei a entender o que estava acontecendo, mas logo descobri que fui colocado como um ajudante da invasão dos moradores de rua, e que eu também poderia responder por aquele crime.

Não fui responsabilizado por nada. O tempo passou e o leilão não encontrou nenhum comprador, ainda que o valor da casa estivesse muito inferior ao valor da região. O trabalho que seria destruir a casa e construir algo novo não compensaria o trabalho. A impressão que ficou foi que preferiam uma casa velha, suja e fétida do que com moradores de rua dentro dela. Por esse motivo, demorou uns dois anos até que o Governo Federal, enfim, destruísse a casa e construísse uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do SUS.

Ironicamente quem mais frequentava a UPA eram justamente os moradores de rua que não tinham plano de saúde. Passaram a dormir na frente da UPA e ninguém poderia fazer muita coisa a respeito. Antes dormiam na Nossa Senhora de Fátima, agora, dormem na Matacavalos. Isso continuou a incomodar os moradores que não gostavam daquele movimento. Os enfermeiros e funcionários iam de carro para a UPA e, por isso, já não havia vaga de estacionamento na rua. Até mesmo passar pela calçada já não era a mesma coisa.

A UPA funcionou por pouco tempo. Foi fechada em menos de um ano. Em seu lugar, mas na mesma estrutura construída para ser a UPA, agora é uma galeria com lojas de alto padrão. De início, ninguém frequentava e era até motivo de piada, de que a casa abandonada deu lugar a um comércio abandonado, mas logo começaram a abrir cafeterias e boutiques. A UPA não tomava todo o terreno, então, em pouco tempo, foi construído outro imóvel no mesmo terreno que veio a ser a primeira sala de cinema da cidade.

Às vezes parecia que só eu via o que eu via, ou pelo menos o que estava acontecendo. Os vizinhos vieram a falecer. O primeiro nem viu a galeria em sua forma final. O último faleceu por volta de 3 anos depois. Foi o acaso e a coincidência a favor do empreendimento. Aos poucos, as casas ao redor se tornaram sujas, velhas e fétidas. O processo judicial de inventário para venda das casas e distribuição de dinheiro para os filhos e netos dos donos se arrastava por anos até que fosse, enfim, resolvido. O brilho só vinha da galeria. Nenhum morador saía para me oferecer café. Várias placas de vende-se surgiram e ali parecia o fim da Matacavalos.

O mesmo empreendimento que tomava conta da UPA comprou outras casas na rua de moradores que vieram a falecer. No seu lugar, o que era uma casa com três quartos se tornou um pequeno prédio de dois andares com seis apartamentos. A rua de Matacavalos é agora a rua da cidade. O empreendimento só foi criticado pela população quando comprou duas casas para demoli-las e fazer no lugar um grande estacionamento.

Houve manifestação por ativistas sociais, arquitetos, advogados e vários políticos da oposição. De nada adiantou. Fizeram placas e levaram megafone, mas o empreendimento seguia. Inclusive, alguns manifestantes tomavam café na cafeteria ali inaugurada. Como estava adiantado neste dia, parei próximo a manifestação, mas não fiz nada além de assistir. Nem tirei minhas mãos dos bolsos da calça.

Um homem se aproximou de mim perguntando as horas. Eu lhe informei e ele me agradeceu. Estava, assim como eu, apenas assistindo. Ele, porém, estava encostado em uma moto. Nela, reparei o capacete de viseira escura. Eu me aproximei dele e acredito que ele tenha percebido o porquê. Não demorou para que eu tocasse no assunto.

No dia em que ele parou a moto em frente à casa, foi o primeiro dia em que ele já não era dono dali. Ele nasceu e cresceu na capital e, pela maior parte da vida, não sabia da existência da casa. Descobriu poucos anos antes de perdê-la. Sabia que, para que ela pudesse ser sua, ela não poderia ser abandonada. Ele postergou para depois, e sempre para depois, viajar mil quilômetros para o interior para ver a casa. Solteiro, sem filhos, não tinha por que não ir, mas também não tinha muito por que ir.

Recebeu a notificação de que a casa não era mais sua e, no dia seguinte, partiu às 6h da manhã rumo à casa. Já não era mais dele. Não sabia que era tão grande nem que valia tanto. Entrou, colocou no celular uma música nostálgica como se tivesse morado a vida inteira ali, mas era sua primeira vez. Chorou como quem perdeu um parente. Poderia brigar na justiça pelo imóvel, mas não era justo nem consigo mesmo. Depois de tanto desdém, interessar-se só agora por algo abandonado por ele mesmo era justo de não ser mais seu.

Aproveitei e lhe contei toda a história até surgir o empreendimento, já que ele não sabia. Ele ameaçou chorar, mas se conteve. Parecia ser uma pessoa emotiva. Pegou o capacete em mãos, disse que precisava voltar para a capital e nem tive a oportunidade de perguntar por qual motivo ele estava ali naquele dia. Ele só me entregou a chave da casa e saiu.


FIM


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