Segurança Pública e Direitos Fundamentais: Além da Repressão, o Papel da Justiça na Construção de um Estado Seguro
- Emmanuele Rosenhein
- 20 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
A segurança pública, enquanto direito fundamental garantido pela Constituição de 1988, é essencial para a estabilidade social e o bem-estar de uma nação. Contudo, sua efetividade vai além da simples aplicação de medidas repressivas, envolvendo uma complexa interação entre o sistema jurídico, as políticas públicas e o sentimento de segurança coletivo da população. A reflexão sobre a segurança pública é muitas vezes centrada na justiça retributiva e na função da punição, conceitos que desempenham um papel crucial na estruturação do sistema de segurança. No entanto, ao focarmos apenas na punição, podemos negligenciar as causas estruturais da criminalidade e, mais importante ainda, o impacto da percepção de segurança na sociedade.
Tradicionalmente, o enfrentamento ao crime é abordado majoritariamente pelo Direito Penal, que atua como ferramenta de repressão e controle social. No entanto, essa abordagem apresenta limitações significativas, especialmente por não tratar as causas estruturais do problema. A Constituição de 1988, ao estabelecer a segurança pública como um direito fundamental, dever do Estado e responsabilidade de todos, oferece uma base jurídica para explorar alternativas que vão além do sistema punitivo, respeitando os princípios democráticos e os direitos fundamentais.
O Direito Penal, ainda que indispensável em alguns casos, é frequentemente criticado por seu caráter paradoxal. Enquanto busca proteger a liberdade e garantir a ordem social, muitas vezes acaba por restringir excessivamente os direitos individuais. Essa contradição se acentua no contexto contemporâneo, em que o crescente temor da criminalidade leva a uma maior aceitação de medidas repressivas pela sociedade, e essa aceitação reflete uma mudança no paradigma do Direito Penal, que deixa de ser a ultima ratio para ser tratado como um instrumento de prevenção e controle cada vez mais centralizado.
A justiça retributiva tem sido uma abordagem predominante na maioria dos sistemas jurídicos, especialmente no Brasil. Ela se baseia na ideia de que o infrator, ao cometer um crime, deve ser punido de forma proporcional ao mal causado, com o intuito de restaurar o equilíbrio social. Embora essa abordagem tenha uma função importante na manutenção da ordem, ela não deve ser vista como a única solução para a criminalidade. A punição tem um papel retributivo, mas também desempenha uma função preventiva, tanto em relação ao infrator quanto à sociedade. A função preventiva da punição, quando aplicada adequadamente, é capaz de dissuadir comportamentos criminosos ao criar a percepção de que as consequências do crime superam os benefícios da transgressão.
Portanto, a eficácia da punição como medida preventiva está profundamente ligada à percepção da sociedade sobre o sistema de justiça e segurança. O sentimento de segurança coletiva é um fator crucial para a eficácia de qualquer política de segurança pública. Quando a sociedade sente que as autoridades estão atuando para garantir a ordem e proteger os cidadãos, a confiança nas instituições de segurança é fortalecida e a criminalidade tende a diminuir. Por outro lado, quando a população percebe falhas no sistema, como a sensação de impunidade ou a ineficiência das políticas públicas, o medo e a insegurança se amplificam, tornando ainda mais difícil o controle da criminalidade.
As pessoas precisam se sentir seguras para poderem viver suas vidas de maneira plena, e essa segurança vai além da simples ausência de crimes. Ela envolve a confiança na capacidade do Estado de agir de forma eficaz, justa e proporcional. A sensação de segurança está ligada não apenas à repressão ao crime, mas também à efetividade das políticas públicas que garantem o acesso aos direitos fundamentais de todos os cidadãos. A transparência e a eficiência no sistema de justiça penal, as forças policiais bem treinadas e a implementação de políticas públicas que abordem as causas estruturais da criminalidade, como a desigualdade social e a exclusão econômica, são essenciais para promover esse sentimento coletivo de segurança.
Investir em políticas públicas estruturais que tratem as causas subjacentes da criminalidade é uma alternativa fundamental ao modelo de justiça retributiva tradicional. A desigualdade social, o acesso restrito à educação, a precariedade habitacional e a exclusão econômica são fatores diretamente relacionados ao aumento da criminalidade. Portanto, ações preventivas que abordem essas questões podem diminuir a dependência do sistema penal, criando uma sociedade mais justa e igualitária, onde as pessoas se sentem seguras por saberem que o Estado está comprometido com seu bem-estar de forma integral. A segurança pública, nesse sentido, deve ser vista como um direito fundamental que não apenas garante a ordem, mas assegura o pleno exercício da liberdade e da dignidade humana.
Mas existem alternativas para além do processo penal que podem minimizar o problema da criminalidade. A prevenção pode ser além de estrutural, a função da punição deve ser vista como parte de um sistema mais amplo que envolva a participação ativa da sociedade. A Constituição já estabelece que a segurança pública é responsabilidade de todos, e a colaboração da população é essencial. Uma dessas alternativas está no fortalecimento de políticas públicas voltadas para as causas estruturais da criminalidade. A desigualdade social, a falta de acesso à educação e ao mercado de trabalho, e a exclusão econômica e habitacional estão no cerne de muitos comportamentos criminosos. Investir em programas de inclusão social, qualificação profissional e acesso a direitos básicos não apenas reduz a vulnerabilidade de indivíduos a práticas ilícitas, mas também fortalece o tecido social, criando comunidades mais resilientes à violência. Nesse sentido, a segurança pública deve ser vista não apenas como um mecanismo de repressão, mas como um direito garantidor da dignidade humana.
Além disso, o avanço tecnológico também oferece alternativas eficazes para reduzir a criminalidade. Dispositivos de segurança em automóveis, sistemas de monitoramento eletrônico e medidas antifraude são exemplos de como a tecnologia pode prevenir crimes sem recorrer a ações repressivas. Esses mecanismos não apenas aumentam a sensação de segurança, mas também reduzem o impacto sobre os direitos individuais, alinhando-se aos princípios constitucionais de respeito à liberdade e à privacidade.
Outro ponto crucial é a reconstrução de normas sociais e valores comunitários, frequentemente apontada como essencial para prevenir condutas criminosas. A "erosão normativa", ou seja, o enfraquecimento das regras sociais informais que regulam o comportamento, é um fator significativo no aumento da criminalidade. Assim, investir em campanhas educativas, iniciativas comunitárias e ações que promovam a solidariedade e o respeito mútuo pode desempenhar um papel central na prevenção do crime.
A participação da sociedade também é fundamental para construir um modelo de segurança mais integrado. A Constituição estabelece que a segurança pública é responsabilidade de todos, o que abre espaço para a colaboração ativa entre o poder público e a sociedade civil. Denúncias anônimas, parcerias público-privadas e programas comunitários de segurança são exemplos de como essa colaboração pode ser efetiva. A criação de incentivos fiscais para empresas que investem em segurança pública ou a formação de conselhos comunitários de segurança são medidas que podem ampliar a participação social no enfrentamento da criminalidade.
Soluções como a mediação de conflitos e a justiça restaurativa também merecem destaque. Essas abordagens, que priorizam a reparação do dano e a reintegração social dos envolvidos, oferecem uma alternativa humanizada ao sistema penal tradicional. Além de reduzir a reincidência criminal, essas práticas reforçam a ideia de que o foco deve estar na reconstrução de laços sociais, e não apenas na punição. No entanto, a implementação dessas alternativas enfrenta desafios significativos. Barreiras políticas e culturais, como o punitivismo amplamente aceito no Brasil, dificultam a adoção de abordagens preventivas e integradoras. Além disso, a falta de recursos financeiros e de planejamento de longo prazo compromete a execução de políticas públicas efetivas.
A segurança pública, como direito fundamental, deve ser promovida dentro de uma visão democrática e integrada, que respeite os direitos humanos e enfrente as causas estruturais da criminalidade. Investir em políticas preventivas, tecnologias, educação e na colaboração entre Estado e sociedade é o caminho para construir um modelo mais eficaz e justo. Reduzir a dependência do processo penal não significa enfraquecer a segurança, mas fortalecê-la com bases mais sólidas e alinhadas aos valores constitucionais, garantindo que a liberdade seja preservada sem sacrificar outros direitos fundamentais.
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