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Seis fundamentos teóricos do constitucionalismo feminista

O constitucionalismo feminista propõe identificar e desafiar os elementos da dogmática jurídica que avaliam o gênero feminino como subalterno ou incapaz de ocupar espaços de poder e liderança em nossa sociedade. Por isso, um dos pilares fundamentais para o constitucionalismo feminista é a igualdade, como meta de equitativa consideração e respeito (DWORKIN, 2000, p. 293) em múltiplas direções, com inexorável tolerância às diferenças, passa a ser a condição de possibilidade de todas as formas de pensar e de agir, de ser e de estar no mundo, mundo este expandido para além dos binarismos do sexo biológico (homem e mulher), de gênero (masculino e feminino) ou da orientação sexual (heterossexual e homossexual). 

É da tensão e do pluralismo que emergem as condições de construção e descoberta, sempre coletiva, dos aportes históricos, teórico-epistemológicos, metodológicos e dogmáticos do constitucionalismo feminista. Tendo seis fundamentos, a dogmática do constitucionalismo feminista, em sua versão doutrinária, apresenta-se não apenas como vetor teórico para a atuação de todos e todas na comunidade institucional e social, mas, principalmente, como ferramenta para todos e todas que trabalham com o Direito puderem contribuir para a sua construção coletiva. 

São eles: i) o princípio da igualdade de gênero; ii) deslocamento temático da periferia para o centro das decisões sobre políticas públicas; iii) releitura e reescrita da doutrina constitucional clássica; iv) perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais; v) perspectiva global e comparativa; vi) as interseccionalidades.

A ideia de igualdade, para o constitucionalismo feminista, é a sua principal e mais evidente premissa dogmático-doutrinária, de forma que, tanto na perspectiva do direito subjetivo à isonomia quanto na perspectiva das políticas públicas que buscam a concretização da igualdade, é preciso considerá-la em todas as decisões informadas pela dogmática constitucional feminista. Para mulheres, assim como para outras minorias excluídas das decisões de poder, a luta pela igualdade formal é um primeiro e importante passo rumo ao seu reconhecimento como cidadãs e cidadãos das nações em que vivem. 

O Estado Democrático de Direito, nesse particular, tem importante função, pois, ao reconhecer, na Constituição e nas leis, a igualdade formal entre homens e mulheres, já catalisa e potencializa a segunda aspiração, que é a igualdade material, meta que constitui e é constituída pela ideia de democracia paritária.

A igualdade material, como pressuposto dogmático do constitucionalismo feminista, apresenta-se como vetor hermenêutico para todas as decisões de poder, de forma que vincula os membros e órgãos de poder, em todas as suas esferas territoriais e funcionais.Isso implica reforçar que não se trata apenas de reconhecer a igualdade como uma ideologia ou como uma expressão retórica presente nos discursos constitucionais das arenas políticas. 

  A igualdade material deve ser aferível na experiência humana, apresentando-se, nesse contexto, como premissa inexorável de todas as reflexões, todas as ações, todos os atos e eventos relacionados às decisões de poder. O modelo político chamado Estado Democrático de Direito passa, assim, a ser informado, em primeiro plano e preferencialmente, pela igualdade. Desse modo, a igualdade deixa de ser uma ideia ou um valor e passa a traduzir-se em direitos e deveres jurídicos, atos e eventos políticos, decisões judiciais e administrativas, contratos e atos da vida privada. A igualdade deixa o lugar idealizado da vontade e passa a ser uma realidade experimentada pelos cidadãos e cidadãs brasileiras. 

Um segundo pressuposto fundamental do constitucionalismo feminista é a transferência das periferias privadas para os centros de decisão e poder das temáticas femininas e feministas. Imagina-se, de antemão, que o constitucionalismo feminista seja guiado pelos pressupostos epistemológicos da isonomia e da inclusão, aptos a lidar com uma dogmática constitucional axiologicamente comprometida com o princípio da igualdade, como respeito ao outro e ao diferente, bem como com uma metodologia que aproxima a mulher, em seu sentido mais amplo, do exercício pleno de sua cidadania constitucional. 

Nesse particular, a proposta é deslocar os temas considerados pouco importantes para o direito constitucional, porque confinados junto com as mulheres aos muros dos espaços domésticos e privados, para o centro dos debates constitucionais mais relevantes. Direitos fundamentais relacionados à saúde da mulher, ao trabalho doméstico, ao mercado de trabalho relacionado ao cuidado, aos direitos reprodutivos, ao planejamento familiar, aos cuidados com a infância e a maternidade, aos direitos sociais e assistenciais, à violência doméstica, à violência obstétrica, entre outros, devem ser pautados na agenda das decisões constitucionais da nação. 

A releitura e reescrita da doutrina constitucional clássica é o terceiro fundamento teórico da dogmática constitucional feminista é a crítica aos paradigmas constitucionais clássicos pelo olhar, pela inteligência e reflexão das mulheres, numa tentativa de reescrever os capítulos do direito constitucional pela perspectiva daquelas que foram colocadas à margem desse debate em sua versão original. A crítica é intrínseca aos movimentos revolucionários, que não se contentam com o status quo e se dispõem a pensar e agir a partir de outras premissas e diferentes métodos. 

Essa é a proposta do terceiro pilar da dogmática constitucional feminista: reler tudo o quanto o direito constitucional constituiu pelas lentes próprias, ou seja, no âmbito feminino, pelas lentes das mulheres. As categorias e os princípios constitucionais devem ser repensados, bem como seus sentidos e significados, a partir dos lugares de vivências e experiências das mulheres. 

E um primeiro deslocamento proposto nesse sentido é a análise crítica da dicotomia entre público e privado, considerando aqui público e privado como os espaços de ação e expressão das mulheres, que, antes confinadas em suas casas e igrejas, passam a ocupar, também, a liderança política em suas comunidades e cargos nas instituições públicas do Estado Democrático de Direito. Também é preciso pensar sobre os conceitos de justiça, dignidade, cidadania, moralidade e outros que foram, predominantemente, construídos por homens.

O quarto fundamento é assumir que existem as perspectivas subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, ou seja, considerar os direitos fundamentais tanto como direitossubjetivos quanto como políticas públicas. É preciso superar a tentação de associar as questões de gênero para o direito constitucional com a agenda da luta ativista por direitos fundamentais subjetivos, individuais ou coletivos, de igualdade de gênero, sendo imprescindível envolver as instituições nesse debate. A formulação de políticas públicas é fundamental para que as lutas ativistas possam surtir efeitos mais amplos e mais longevos, de modo a não considerá-los apenas como direitos subjetivos, quando se está a tratar de direitos fundamentais que concretizam a igualdade, especialmente, a de gênero. 

As perspectivas global e comparativa indicam que o constitucionalismo feminista é um movimento acadêmico que só acontece em rede e no coletivo. Assim, é imprescindível conhecer as realidades das Constituições, da produção acadêmica e da jurisprudência das diferentes nações do mundo, para que se consiga uma base epistemológica e metodológica sustentável para o constitucionalismo feminista. 

Como o propósito do constitucionalismo feminista é refundar o constitucionalismo clássico para nele incluir vozes, pensamentos, vivências e experiências de todos e todas que foram alijados do processo inaugural desse movimento, ter como premissas as perspectivas global e comparativa é considerar as metodologias abertas, plurais, inclusivas e sustentáveis como aquelas próprias dos estudos do constitucionalismo feminista. 

Por fim, a perspectiva interseccional apresenta-se como a sexta premissa da dogmática constitucional feminista, implicando uma necessária integração das teorias da diversidade, ou seja, a consideração da perspectiva interseccional como fundamento da doutrina constitucional feminista. Nessa perspectiva, é importante fazer um registro inicial relevante: o constitucionalismo clássico descortinou-se, ao longo dos dois últimos séculos, como um movimento que promoveu ou tolerou diversas e sérias exclusões. 

Apesar de o motivo condutor do constitucionalismo clássico sempre ter sido o reconhecimento de direitos fundamentais e a organização do poder do Estado Democrático de Direito em benefício da cidadania, o que se registra, na história constitucional feminista, são discursos e ações de exclusões persistentes.

É fato que as mulheres e cidadãs não foram destinatárias das conquistas das revoluções liberais do final do século, o que justifica a sua luta, até os dias atuais, pelos direitos fundamentais que sempre foram reconhecidos aos homens. E, não se pode deixar de registrar que, junto com as mulheres, tudo o que diz respeito ao feminino também foi marginalizado e confinado aos ambientes domésticos e privados, excluído, portanto, da arena pública e política. 

Daí emerge a importância de uma sustentação teórica para as lutas das mulheres, o que justifica os esforços das constitucionalistas feministas em criar as condições dogmático-doutrinárias para amparar a caminhada, ainda muito íngreme e cheia de obstáculos, para a tão sonhada igualdade material entre homens e mulheres, preconizada no artigo 5º, I, da Constituição da República. 

 

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