Uma pergunta essencial para o Constitucionalismo Feminista: feminista ou feminina?
- Christine Peter
- 9 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
O constitucionalismo feminista não é uma leitura feminista da Constituição e dos direitos fundamentais, mas isso não significa que não pode ser! Constitucionalismo feminista é a refundação do Estado Democrático de Direito por aquelas e aqueles que foram excluídos de sua constituição fundacional, ocorrida há mais de dois séculos e meio.
É a própria (re)constitucionalização, ou seja, revolução sócio-política que se ocupa de dar vontade, voz e decisão para todas as excluídas e excluídos do processo de reconhecimento de direitos individuais, coletivos e difusos prometidos pelo Estado Moderno e, ainda, não entregue pelo Estado de Direito Contemporâneo. É um movimento acadêmico que pretende, tendo como ponto de partida a concretização material da igualdade de gênero, jogar luzes sobre o que foi excluído, invisibilizado e marginalizado no constitucionalismo clássico.
A pergunta central que move professoras e pesquisadoras do direito constitucional, em diversos países, é cadê as mulheres do constitucionalismo. Será que existe uma diferença ontológica entre uma abordagem feminista e uma abordagem feminina do constitucionalismo? A resposta a esta pergunta é a chave de compreensão mais relevante da teoria da Constituição que exsurge do constitucionalismo feminista, de modo que deve ser objeto de intenso e incansável debate, ao qual se deve acessar a partir de alguns questionamentos.
Será que importa saber se o constitucionalismo é, ou não, feminista? Será que o movimento feminista tem espaço de atividade pré-determinado, qual seja, a esfera pública, ou também pode ocorrer em espaços geográficos privados, incluindo, as relações entre entes privados? Qual a relação entre humanismo e feminismo?
A contribuição aqui almejada não pode ser outra senão registrar o estado da arte de minhas reflexões neste debate, com o intuito de instigar o pensamento crítico de todas e todos que queiram dele tomar parte, pois um dos pressupostos do constitucionalismo feminista é a reescrita dos institutos e elementos básicos do direito constitucional, considerando a interpretação das excluídas e excluídos do processo de fundação e constituição do Estado de Direito.
A força do diálogo e da intersubjetividade, num ambiente de pluralidade e interseccionalidade, são pontos de partida do debate constitucionalista contemporâneo. Numa apertada síntese, o pilar do constitucionalismo feminista é a igualdade plena, nas dimensões individual, coletiva e difusa, para que todos os seres vivos humanos e não-humanos de nosso planeta possam plenamente gozar de seu protagonismo histórico como sujeitos de direitos fundamentais.
A relação entre humanismo e feminismo é radical. Ambos os movimentos são abastecidos pelas mesmas fontes históricas e culturais, bem como ambos os movimentos são desafiados pelos mesmos interlocutores oponentes. Muito embora a pauta humanista possa ser considerada mais abrangente do que a pauta feminista, em termos mais estreitos de pontuação histórica, a luta de ambos os movimentos, nos últimos dois séculos, atesta muito mais interseções do que oposições, muito mais perpendiculares do que paralelos.
E, nesse contexto, ser feminina ou feminista, não é, sob a perspectiva teórica, crucial, pois que as reivindicações das excluídas e excluídos, numa terceira onda de direitos que, a par de continuar lutando pelo direito à igualdade plena entre mulheres e homens, pelo direito à emancipação das mulheres em todos os âmbitos, bem como pelo direito a ações afirmativas que possam mitigar e equilibrar a diferença que historicamente os espaços institucionais de poder, ocupados por maioria esmagadora de homens, busca uma compreensão inclusiva de Estado, Sociedade e Indivíduo, a qual apresenta a sustentabilidade, a sororidade, a fraternidade e a solidariedade como vetores constitucionais, alternativas de compreensão do mundo.
Se, no início, a luta era pelo voto feminino, depois pelas iguais condições no mercado de trabalho, desembocando na autodeterminação feminina como meta, hoje a luta é pela máxima efetividade do direito de pensar e ser feminina em todos os ambientes da sociedade, inclusive, e principalmente, na cúpula do poder, onde as decisões de grande repercussão social são tomadas e onde as mulheres, em todas as suas interseccionalidades, ainda são grupo minoritário e, o pior, seres invisíveis.
Por isso, apresenta-se relevante apresentar pontos centrais da teoria da Constituição a partir de uma leitura das excluídas e excluídos. Os conceitos de Constituição, República, Federação, Separação de Poderes, Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade apresentam-se como pontos de análise para esta reflexão, mas ao contrário, pretende abrir-se para construção coletiva e inclusiva de suas possibilidades teóricas e práticas.
A Constituição, vista sob a perspectiva da hermenêutica constitucional feminista, é norma fundamental que acolhe, acomoda, nutre e compromete-se com as divergências, com os paradoxos, com as impossibilidades, com os projetos, com os programas de futuro, com as singularidades, com as complexidades, enfim, com o complexo desafio de entregar para a sociedade regras, princípios e decisões constitucionais que proporcionem condições efetivas de uma dinâmica social livre, justa e solidária.
A República é um atributo da organização política pautado em três pilares fundamentais: efemeridade, aleatoriedade e responsabilidade. O devir é a regra histórica mais óbvia, de modo que o exercício do poder não pode contrariar essa expectativa tão natural, quanto desejável, em uma sociedade culturalmente republicana. A igualdade de chances impõe o alcance da lógica da aleatoriedade, pois não pode haver pré-concepções, nem pré-compreensões, nas escolhas republicanas. Por fim, a regra de causas e efeitos impõe que para toda ação republicana esteja prevista uma reação igual e proporcional, o que, na teoria constitucional, ganhou a alcunha de responsabilidade.
Por Federação, entenda-se o pacto firmado com alicerce na cooperação e solidariedade para o enfrentamento dos desafios comuns. Não é possível conceber o federalismo sem o compartilhamento, sempre tenso e conflituoso, de poder. Porém, também não há fórmula mais adequada para enfrentar os problemas do federalismo do que a partilha cooperativa e solidária de competências, deveres e obrigações constitucionalmente destinadas.
A Separação de Poderes é uma relação, a qual, antes de qualquer outro atributo, deve ser enfrentada sob a perspectiva das suas intrínsecas tensões e naturais conflitos. As instituições e órgãos disputam espaços reais e simbólicos de poder desde tempos imemoriais, e as melhores técnicas para enfrentamento das crises forjadas nessa disputa passam pelas técnicas de linguagem alternativas em relação à ética vigente para os espaços da política.
É preciso dizer que uma teoria geral dos direitos fundamentais influenciada pelo paradigma do constitucionalismo feminista há de ser comprometido com a dignidade da pessoa humana como vetor ideológico primário, acolhendo e acomodando todas as demais ideologias, tais como a liberal, socialista, democrática, institucional e social, nesse extenso vetor hermenêutico.
Por fim, a própria ideia de Jurisdição Constitucional, nesse contexto da separação de poderes, pode ser compreendida como uma instituição alinhada com valores plurais, abertas e democráticas, constituindo-se assim como a pessoa jurídica do Estado Constitucional que reúne, no rol de suas competências, atribuições para oferecer soluções, ainda que provisoriamente, para os paradoxos e contradições constitucionais. Os desafios de uma Corte Constitucional devem ser enfrentados, nas democracias contemporâneas, a partir dos paradigmas da sustentabilidade, da sororidade, da fraternidade e da solidariedade, de forma que possam haver ganhos institucionais para o Estado Constitucional e Democrático de mesma inspiração.
Por isso é preciso dizer que há muito estudo, pesquisa e trabalho a serem feitos nessa seara, e não podemos nos perder nas discussões sobre se a teoria constitucional deveria, ou não, ser feminista ou feminina. É constitucionalismo feminista porque a rede internacional de professoras e pesquisadoras de direito constitucional escolheu esse termo. O importante é estarmos todas e todos na mesma página, no mesmo artigo da Constituição, sobre a necessidade de ser um constitucionalismo inclusivo, plural e democrático, portanto, feminista e, também, como não, feminino!
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